Em Crioulo

Ontem à noite entrei na sala de jantar e encontrei o meu pai sentado à mesa com imensas cartas espalhadas à sua frente. Levantou a cabeça, sorriu para mim, antes de mergulhar novamente naquele mar de linhas que o tempo não apagou.
Perguntei a mim mesma se seriam as cartas trocadas com a minha mãe durante o namoro, mas rapidamente ela me disse que era a correspondência trocada com os meus avós e o meu tio, durante o tempo em que o o meu pai esteve na Guiné-Bissau.
Achei curioso ele estar a mexer nas lembranças do tempo da Guerra Colonial, justamente passados uns dias de eu ter escrito, sem ele saber, o texto HERÓIS...
Fiquei a observa-lo, embrenhado nas letras escritas,
pelo seu próprio punho, aos seus pais (que já não podem ler o que escreveram como resposta). Muito expressivo, tal como eu, ia mostrando emoções nas caras que fazia. De vez em quando olhava para nós e sorria, com os lábios e com os olhos. O mais notável para mim é mesmo essa capacidade de sorrir para um passado difícil, é a saudade que sente dos sítios, de alguns momentos, das pessoas... Mesmo tendo vivido no pior dos sítios, nas piores circunstâncias!
Hoje acordei, os envelopes azuis claros, riscados a toda a volta, continuavam lá em cima da mesa. Parei para olhá-los mais de perto. Sem pensar muito, pousei a caneca do cappuccino, o prato com as torradas e escolhi um envelope ao acaso. Abri.
O meu pai tinha 23 anos, era Dezembro, era quase Natal...
No final, de olhos molhados, engoli em seco. Meti a carta no envelope e deixei-a lá no monte juntamente com as outras. Saí da sala, o barulho dos bombardeamentos foi ficando cada vez mais longe, foi ficando lá para trás...

1 Vizinho(s) mais amarelo(s):

Poetic Girl disse...

Os meus pais também têm uma longa correspondência trocada entre ambos enquanto o meu pai esteve na guerra, uma preciosidade diria eu, bjs