Aquela casa


Não me lembrava da última vez que tinha lá estado. Desde que a minha avó morreu, há dois anos, que me custa muito entrar naquela casa. Fica na mesma rua que a minha, passo por ela tantas vezes, mas agora não entro... fico a olhar para ela, por fora, com um olhar vago, como se não visse bem que casa é aquela, como se não me lembrasse de tudo o que vivi lá dentro. Hoje tinha que ir lá. Era um bom dia para ir. Fui numa solidão acompanhada, pensei nas pessoas que têm que recuar a lugares mais longínquos do que este e senti-me forte.
Abri a porta e as vozes de uma grande família, os risos e gritos de muitas crianças, ecoaram nas paredes. Em segundos tudo desapareceu, fez-se silêncio. Como era possível uma casa que sempre esteve tão cheia de tudo agora estar tão... vazia?
Já que ali estava precisava de ver todos os compartimentos, todos os esconderijos, todos os cantos. Estava tudo no mesmo sítio, mas parecia noutra dimensão.
Rodei chaves para destrancar portas, sentei-me nas cadeiras vagas, acendi luzes para quebrar a escuridão.
Percorri devagar os corredores onde tantas vezes corri a jogar às escondidas, à procura do sítio ideal para não ser encontrada. As paredes da entrada, agora pintadas numa só cor, não deixam ver que em tempos estiveram todas cheias de desenhos, frases, sarrabiscos dos mais novos. Entrei na casa de banho, enorme, onde fazíamos jogos com as vozes, por causa da acústica.
Fui ver as escadas que dão para o andar de cima, que desci tantas vezes em cima dum colchão voador, roubado às camas, e pilotado pelos meus primos mais velhos.
A cozinha tão quente no passado tinha agora o fogo apagado. Já não se contam histórias à lareira, já não se adormece no sofá enquanto a avó escreve as primeiras frases da sua nova música.
Os quartos vazios guardam lembranças dos que já não dormem mais naquelas camas.
Na sala continuam as imagens dos vários ramos da árvore genealógica, penduradas na parede, a olhar para quem passa. Fiquei a olhar para eles e eles a olhar para mim.
Abri todos os armários, mexi nos livros empoeirados, que apesar de serem meus agora, continuam expostos nas mesmas estantes. Sentei-me na secretária do meu avô. As pernas que primeiro ficavam a baloiçar no ar, hoje chegam bem ao chão. Brinquei tanto ali sentada a escrever nas agendas, consultar livros, atender o telefone, a fingir que era como ele que agora posso mesmo vir a sê-lo.
Vi-me pequenina, a rir para a foto, pousada em cima da mesa, a fazer companhia às outras caras conhecidas. Algumas caras já não se podem ver, a não ser ali.
A casa, agora, parece ainda maior do que é. Mas ao mesmo tempo parece pequena para todas as histórias que guardam aquelas paredes, aquele chão, aquele tecto.
Não fui ao andar de cima, nem fui ao jardim já escurecido pela noite. Ficou tanto para ver... Ficou tanto por viver... Mas assim tenho um bom motivo para voltar lá.
Tal como aquela casa, as lembranças vividas lá são para sempre minhas.

3 Vizinho(s) mais amarelo(s):

m.a.r.o. disse...

Existem viagens, que não são mais que regressos aos pontos zero das nossas vidas... para que em minutos possamos sentir de novo tudo o que somos, tudo o que ainda seremos, sem ponta de mágoa pelo que nos tiraram, onde recarregamos os ecos dos sentimentos que ficaram...

Pérola Negra disse...

m.a.r.o.: Obrigada pelas palavras. Sabe bem ouvir palavras de coragem antes dos regressos e ouvir palavras de conforto depois dos regressos. Tu sabes...

m.a.r.o. disse...

pois sei...